domingo, novembro 27, 2005

VERTIGO - Obsessão e Psicose


Com o infeliz título português (como é tradição nossa) de “A Mulher que Viveu Duas Vezes”, Vertigo (ou “Vertigem” tão-somente) permanece uma referência insubstituível na intensa produção fílmica de Sir Alfred Hitchcock, em primeira instância no que se refere à sua construção centrípeta e, portanto, intrincada sobre si mesma.

Concebida em 1958 (entre Rear Window [1954] e Psycho [1960]), esta obra pode bem entender-se como monumento erigido à capacidade que o cinema tem, por excelência, de tecer a ilusão; a ilusão do equilíbrio (ou da falta dele) de Scottie (James Stewart), um polícia em convalescença perturbado pela morte de um colega; a ilusão de uma mulher (Kim Novak) que se faz passar por outra; a ilusão da morte; a ilusão do tempo – relativizado no interior de um tronco de sequóia; enfim a ilusão do próprio espectador, que tarda em apossar-se dos elementos mínimos que lhe permitirão construir uma versão coerente da narrativa.

Vertigem desde o primeiro instante, espiralando-se adentro a íris de um olho humano, de mulher. Vertigem na ligação entre mundos, dos vivos e dos mortos, das figuras de carne e osso e das pessoas pintadas numa tela. Vertigem de um vestido verde vivificando-se, ardendo por entre um salão saturado de vermelhos. Vertigem do déjà-vurepetição da morte e das suas circunstâncias.

No centro da espiral existe o vazio, multiplicado sobre si mesmo. Existe uma gravidade incontornável que puxa a matéria para o centro e a faz girar e cair. E apenas isso. Sem parar. É essa a raiz da vertigem – a incapacidade de discernir um ponto sólido, estático, que sugira o fundo do poço, o fim da queda.

Vertigem é o tormento de um homem, que um outro aproveita obscuramente para proveito próprio. É uma angústia que alastra ao espectador, que só pode lamentar o presente envenenado que é saber um pouco mais que o protagonista e ainda assim ser surpreendido pelo poder de sucção da espiral que, no fim, atrai para o abismo uma mulher que não pára de morrer (ou que pelo menos já “viveu duas vezes”), desta feita com o nome de Judy Barton…

No centro da vertigem jaz a morte, que pune quem a desafia. Mas e o que acontece àqueles que, como Scottie, se vêem de súbito na sua periferia, entre a estabilidade e a instabilidade? Será que alguma vez recuperarão na totalidade? Ou a vertigem não é apenas um estádio mas um medo adormecido, pronto a despertar a qualquer momento, como brecha súbita rasgando-se debaixo dos nossos pés? E será esse medo instrumentalizável por mãos alheias, em desfavor do desgraçado que ceder a esta fobia?

Daniel Boto

domingo, novembro 20, 2005

A questão do narrador

Na sequencia da exibição de Mulholland Dr e de Suzhou River, coloco a seguinte questão:

Como personagem, o realizador não participa no filme, porque não é uma personagem da história mas sim do método de a contar e, como tal, é "apenas" mais uma peça de um processo.
Mas o narrador (muito comummente confundido com o realizador), como entidade integrante de vários níveis de narração, muitas vezes derivado da mesma, torna-se indissociável e indispensável não só para o entendimento da história, como para a sua própria coerência e, mesmo, existência.
Existirá este tipo de narrador oculto em Mulholland Drive como acontece em Suzhou River?

Gustavo Silveirinha
(aluno de Arquitectura)

terça-feira, novembro 15, 2005

Suzhou River 1: O posmodernismo chinês


Quem me conhece de outras disciplinas sabe que as alterações ao programa – ou, pelo menos, à sequência inicial dos seus diversos módulos – costumam ser mais do que uma simples excepção. Tais alterações não resultam, evidentemente, de qualquer capricho, mas do modo como decorre o trabalho nas aulas e das questões que se levantam durante a discussão alargada das obras. É assim que surge, depois de Lynch, o primeiro (não asseguro que seja o último) filme não programado.
Trata-se de uma obra de 1999, realizado por Lou Ye, cineasta da 6ª Geração chinesa. O filme, distribuído internacionalmente em 2000, não foi ainda, que eu saiba, exibido no nosso país e o título português que proponho, O Rio do Amor, corresponde à tradução do título francês, La Rivière de l’Amour. Em inglês, é conhecido por Suzhou River.
Conheci-o graças à leitura, e posterior arguição, de uma tese de mestrado. Intitula-se Postmodernism with Chinese Characteristics: Media and Politics in the Cinematic Images of the Post-New Era e foi apresentada por Marco Aurélio de Oliveira Jesus à Universidade de Aveiro, sob a orientação de João Mário Grilo. Nela se analisa a fase actual de desenvolvimento da sociedade chinesa, desde o fim da revolução cultural. Este período, definido pelo autor da tese como um posmodernismo de características particulares, merece um estudo profundo, que a universidade portuguesa, de um modo geral, não parece interessada em fazer. Saúda-se por isso o trabalho do autor e a Secção Autónoma de Ciências Políticas, Sociais e Jurídicas da Universidade de Aveiro.

Abílio Hernandez

Suzhou River 2: If I leave you some day, would you look for me?

O início do filme prende de imediato o espectador e prendeu, creio, os alunos de Análise de Filmes II. Num fundo escuro que gradualmente toma a forma e a tonalidade do leito sujo de um rio, ouvimos um breve diálogo entre duas vozes: a de uma mulher que pergunta e a de um homem que laconicamente responde. Cito-o em inglês, por essa ser a língua das legendas da cópia com que trabalhamos:

- If I leave you some day, would you look for me? Like Mardar?
- Yes.
- Would you look for me forever?
- Yes.
- Your whole life?
- Yes.
- You’re lying.

Abílio Hernandez

Suzhou River 3: Nas margens do rio e da vida


Destas palavras e do leito do rio partimos para uma história (ou duas?) de amor, de busca (por alguém que se perdeu? por um ideal ainda não encontrado?), de (des)esperança e solidão.
Nas margens da história e do rio (o verdadeiro protagonista do filme?), corre uma Shanghai diferente da que os postais ilustrados geralmente nos mostram: a Shanghai de arquitectura degradada, de gente pobre e lacerada por uma vida incerta e marginal.

Abílio Hernandez

Suzhou River 4: Cameras don’t lie

A voz do homem é a de um narrador cujo rosto nunca vemos em todo o filme. Videógrafo de profissão, diz-nos, enquanto percorre de barco o rio, que as histórias estão ali, no leito e nas margens do Suzhou, já feitas e à espera de serem contadas, e que ele se limita a registá-las com a sua câmara. Se não gostarmos do que vemos, não nos poderemos queixar. Cameras don’t lie, justifica-se.
Esta é, porventura, a sua primeira mentira. As câmaras tanto mentem como dizem a verdade. Não a verdade ou a mentira delas, mas a verdade ou a mentira de quem faz delas o instrumento privilegiado de narração.
Na realidade, a câmara, por si só, não existe e por isso não narra. Não é ela que, em verdade, olha, mas alguém (uma entidade) que olha através dela e selecciona o que ela deve, em cada circunstância, mostrar ou ocultar.
A câmara é o olho (não o olhar) e o braço (não a escrita) dessa entidade.
Se um narrador mente, a câmara mente.
You’re lying, diz a mulher para o narrador que nos diz que as câmaras não mentem.

Abílio Hernandez

Lynch em ambiente de aula


Apesar da intimidação que, a par do fascínio, Mulholland Drive causa em muitos dos seus espectadores, a análise e a discussão, em aula, do filme de Lynch pareceu-me bastante proveitosa.
Continuo, porém, a convidar os alunos (e não só) a enviar mais contributos para este blog. Não se trata de elaborar trabalhos académicos (lá iremos), mas de ir trocando impressões e opiniões sobre o trabalho que vamos fazendo e os filmes que vamos analisando.
A este propósito, e como o filme será utilizado no seminário do Mestrado e da Pós-Graduação em Estudos Anglo-Americanos, conto também com a participação crítica das e dos ‘seminaristas’. Voltaremos, pois, a Lynch.

Abílio Hernandez

quarta-feira, novembro 02, 2005

Do sonho à tragédia

Recorrendo a uma "fábrica de sonhos", Hollywood, David Lynch fala do trágico ideal ilusório.
Sonhos, esperanças e paixões fortes dão lugar a contrariedades e desilusões da mesma intensidade.
Ambições e paixões demonstram o lado egoísta e a realidade confronta a personagem principal com o lado sujo da vontade humana, dos sentimentos e actos que acarretam em culpa e, por fim, em desespero perante a vida.

Paulo David Carvalho
(aluno de Arquitectura)