terça-feira, abril 20, 2010

As Asas do Desejo I

Der Himmel über Berlin: Wim Wenders, 1987

Eternidade e efémero ou a condição humana como desejo



Anjos sobrevoam Berlim. Escutam os pensamentos e as angústias dos berlinenses com curiosidade e espanto. Assistem ao viver quotidiano dos humanos como os espectadores que assistem a um filme. Mas tal como o espectador na sala de cinema, os anjos são passivos, assistem aos diferentes ‘filmes’ sem nada poder alterar . Contemplativos, os anjos vêem o mundo a preto e branco: sem cores, sem emoções.
São anjos e, por isso, imortais. Mas engana-se quem pensa que a plenitude é dada pela imortalidade… O ser pleno não deseja porque não sente falta, logo, não procura, permanece imóvel. Os anjos de Wenders (parecem detectives do film noir ) desejam… Damiel (Bruno Ganz) é um anjo atravessado pela falta, falta que progressivamente o vai metamorfoseando num humano, demasiado humano… Damiel, consciente da falta, sente desejo… ele é o desejo. Atravessado pelo desejo da vida, o desejo de uma existência humana, o desejo de conhecer, o desejo de saber , desejo de experimentar, desejo de sentir a pele de Marion (a trapezista de circo por quem se apaixona) mas, também, o desejo de transcender a sua condição eterna, ou seja, de transcender a transcendência.
Somos sensíveis aos mortais que desejam a imortalidade e a plenitude, compreendemos a revolta do homem contra a sua finitude, compreendemos o medo da morte, compreendemos a fuga dos homens às condicionantes espacio-temporais, procurando, deste modo, transcender os seus limites. Os humanos tentam permanentemente transcender, fugir ao efémero, à transitoriedade, procurando a eternidade. Pelo contrário, estes anjos que desejam, que querem ser humanos, escolhem a transitoriedade, o efémero. Parece absurda a ideia de renunciar à existência de anjo a favor de uma vida humana. Contudo, se a existência humana é limitada pelo tempo, ela é mais autêntica, vivida e real que a existência dos anjos. Porque não «trocar a sua imortalidade por uma vida humana, curta e ardente» ?



«Cassiel – E tu que tens para contar?
Damiel – Uma transeunte fechou o chapéu-de-chuva e ficou encharcada. (…) É fantástico viver espiritualmente. Dia após dia testemunhar para a eternidade o que há de puro, de espiritual, nas pessoas. Mas, às vezes, farto-me desta eterna existência de espírito. (…) Gostaria de sentir um peso que anulasse a infinidade e me segurasse à Terra. A cada passo ou a cada golpe de vento. Gostaria de poder dizer: «agora, agora, agora» e não «desde sempre» ou «para todo o sempre».
Sentar-me à mesa e jogar às cartas, ser cumprimentado nem que seja só com um aceno. (…) Eu não quero gerar um filho nem plantar uma árvore, mas seria agradável chegar a casa cansado e dar de comer ao gato, como Philip Marlowe, ter febre, ficar com os dedos sujos de ter lido o jornal… Não me entusiasmar só com coisas do espírito, mas com uma refeição, a curva de uma nuca, uma orelha. Mentir à descarada. (…) E, finalmente, supor em vez de saber sempre tudo. Poder dizer «ah», «oh» e «ai» em vez de «sim» e «ámen».
Cassiel – Poder, ao menos uma vez, entusiasmar-me com o Mal. (…) Ser selvagem.
Damiel – Ou experimentar o que se sente quando se tiram os sapatos debaixo da mesa e se estendem os dedos descalços.»


No filme de Wenders, o desejo é o que confere sentido à existência humana, conquistamos a humanidade a partir do desejo.
No princípio era o desejo…o desejo faz a história. E o Verbo. Damiel sabe algo que os anjos não sabem: conhece o desejo, sabe que a humanidade tem uma beleza peculiar e, por isso, escreve. «Agora, eu sei o que nenhum anjo sabe...»
(…)
A temática do efémero versus eternidade surge em dois temas fundamentais da discografia de Nick Cave and the Bad Seeds, «The Carny» e «From her to Eternity» que o filme de Wenders convoca.

1- A ideia de um filme protagonizado por anjos esclarece-a Wim Wenders na obra, «Wim Wenders, A lógica das imagens»: «A posteriori é-me já quase impossível determinar como nasceu a ideia de povoar com anjos a minha história em Berlim. Surgiu de muitas fontes ao mesmo tempo. Foram, sobretudo, as Elegias de Duíno de Rilke. Depois foram, já desde há muito, os quadros de Paul Klee. O Engel der Geschichte de Walter Benjamin. Foi, de repente, também uma canção dos Cure, na qual se falava de fallen angels e uma música no auto-rádio, em que aparecia o verso talk to an angel. Foi, um dia, no centro de Berlim, aperceber-me daquela figura dourada, o «anjo da paz» (…) resumindo, foi, por assim dizer, a velha «nostalgia do transcendente» e foi simultaneamente também a vontade do contrário flagrante: a vontade de fazer uma comédia!», pp.118-119. Trata-se, já aqui, do cinema a convocar outras artes: literatura, a pintura e a música ou melhor, neste caso, a ser convocado por elas.
2-Cf. Wim Wenders, «Wim Wenders, A lógica das imagens»: «Os anjos estão, portanto, em Berlim desde o fim da Segunda Guerra Mundial, condenados a permanecer aqui. Não detêm já «poder» algum, são apenas espectadores, assistem a tudo aquilo que acontece, sem a mais pequena possibilidade de poderem participar.», p.121.
3- Peter Falk (detective Colombo) está a filmar em Berlim e vimos a descobrir que já fora um anjo que desejou tornar-se humano e se lançou na procura dessa humanidade.
4- De salientar que a raiz etimológica da palavra saber reside em sophia, traduzida em latim por sapiência. Sapiência significa, entre outras coisas, saborear. Este anjo porque sente falta, deseja e procura colmatar o seu desejo. Ele é, por natureza, filósofo. Também o filósofo procura saborear as coisas boas e más da vida para lhes construir um sentido. (É interessante o modo como este filme percorre o terreno da Filosofia)

5-Wim Wenders escreve «nunca antes isto acontecera. Que é possível, isso sabem-no os anjos. As consequências, porém, são desconhecidas.
O anjo que teve a ideia terrível tinha sentido o desejo de se apaixonar por uma pessoa, por uma mulher, e a ideia de poder tocá-la esteve na origem deste pensamento de resultado imprevisível. Fala sobre isto aos seus amigos. Primeiro, estes ficam chocados. Depois, porém, ponderam seriamente sobre as consequências e imaginam o que poderia acontecer como resultado de que alguns de entre eles estejam, afinal, prontos a ousar dar este passo: trocar a sua imortalidade por uma vida humana, curta e ardente.» in, Wim Wenders (2010), Wim Wenders, A lógica das imagens. Lisboa: Edições 70, p.124

6-Trocadilho com o título do livro de James Jones e com o título do filme de Fred Zinnemann «From here to Eternity». Este trocadilho não é inocente e reside na substituição do deítico espacial (here) pelo deítico pessoal (her). Aqui, o cinema convoca uma música que, por sua vez, convoca o cinema. Esta intertextualidade enriquece o objecto artístico e dá-lhe outros sentidos, propicia outras abordagens.

Cristina Janicas
Abril de 2010

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As Asas do Desejo II
Der Himmel über Berlin: Wim Wenders, 1987


O cinema e o circo

Wenders escolhe o circo como metáfora da vida humana. O circo é, por excelência, a arte do efémero. O circo é transitório… a vida do circo é curta… fragmentada… monta-se a tenda… faz-se o espectáculo… desmonta-se a tenda e fica a marca de um vazio, de uma ausência, de algo que já não é. O circo não possui raízes, é, por natureza, nómada e a-espacial. A vida humana é como a do circo… nasce, constrói-se mas, acaba.
A primeira imagem que se vê do circo é-nos dada através de uma passagem pela qual podemos ver uma tenda. A câmara aproxima-se e mostra-nos as pessoas do circo. À semelhança do circo também aqueles que o habitam são humanos desenraizados. E, por isso, livres.

«Marion – Não sei quem sou, não faço ideia. Sou alguém sem origens, sem história, sem país e quero continuar assim. Estou aqui, sou livre, posso imaginar tudo. Tudo é possível. Basta erguer os olhos e volto a ser o mundo. Agora, aqui, uma sensação de felicidade que sempre poderei ter.»


É no circo que Damiel vai encontrar o objecto do seu desejo, que o vai impelir a metamorfosear-se em humano: Marion, a trapezista, a que voa, a que (como alguns na vida…) tenta transcender os limites do humano.
No decurso da metamorfose de Damiel, este cruza-se com Peter Falk junto a uma roulotte, mais um lugar sem raízes…transitório…efémero.
O circo não representa apenas a transitoriedade da condição humana. Nele encontramos a tragédia, a comédia, o sublime, o horrendo, o equilíbrio, a harmonia, a desproporção… a vida e a grandeza e pequenez que encerra. Ou seja, nele encontramos a diversidade da experiência humana, a variedade de matizes, as cores.
O circo é, ainda, o lugar por excelência das crianças, um lugar onde situamos a infância e a inocência de que fala o poema de Peter Handke, Lied Vom Kindsein (A Canção da Infância), que inicia o filme. A criança que é capaz de ver o invisível (os anjos...), que é capaz de sonhar, contrasta com os adultos que vivem isolados, fechados entre quatro paredes ou em si mesmos, adultos inexpressivos, sem vida que deambulam pela cidade de Berlim. Esses perderam a capacidade de desejar e de sonhar. Só a criança é capaz de olhar um ribeiro e ver um rio e olhar um charco e ver o mar. A criança olha a existência como um feixe de inúmeras possibilidades.


1-Talvez, por isso, o circo seja considerado uma arte menor ao contrário das outras artes cujas obras possuem uma durabilidade que transcende o tempo.
2- Um anjo caído, agora actor de cinema, que se encontra em Berlim a rodar um filme sobre a 2ª Guerra Mundial e a quem o desejo já levara a transformar-se em humano).
Peter Falk testemunha a favor da condição humana: «Peter Falk – Não te vejo, mas sei que estás aqui. Sinto-o. Andas por perto desde que cheguei. Gostava de poder ver a tua cara. Olhar-te nos olhos e dizer-te como é bom estar aqui, tocar nas coisas, agarrar. É uma sensação boa. Fumar, tomar café. As duas coisas juntas é fantástico. Ou desenhar. (…) Quando temos as mãos frias, esfregamo-las uma na outra. É bom. É uma sensação boa. Tantas coisas boas! Mas tu não estás aqui. Eu estou. Gostava que estivesses. Gostava que pudesses falar comigo. Eu sou um amigo, «compañero».

3-É quando, no interior do circo, vê Marion, pela primeira vez, que Damiel começa a experienciar o mundo de um modo humano. Por isso, as cores aparecem no filme de Wenders até aqui monocromático

Cristina Janicas
Abril de 2010

As Asas do Desejo III
Der Himmel über Berlin: Wim Wenders, 1987


O Cinema que convoca o cinema: evocação da memória

A memória é um tema igualmente central neste filme. Uma personagem fundamental é o velho narrador, Homero, que surge no princípio da narrativa na biblioteca, lugar dos anjos e do saber acumulado. Esta personagem é a memória e a história sem as quais não haveria construção de um futuro... E o cinema é uma das armas contra o esquecimento.
O auto-intitulado narrador tem a memória da Segunda Guerra e de Berlim antes dela. Deseja voltar a Potsdamer Platz (destruída pelos bombardeamentos); por isso, caminha e procura. Ele procura a história, tenta reconstruir a cidade, imaginando os espaços que frequentou no passado. Mas restam apenas o vazio e as memórias. A memória permite o diálogo do passado com o presente mas dá-nos conta mais uma vez da transitoriedade e do efémero. A invisibilidade do Potsdamer Platz torna-se visibilidade pela memória do velho narrador e pelas imagens filmadas que passam, cortando o presente e que mostram que este presente o é em função de um passado que já foi mas que o cinema pode sempre actualizar... por isso Peter Falk está em Berlim a filmar a Segunda Guerra... contra o esquecimento.

(…)

Este filme é composto de fragmentos... de espaços da cidade, de interiores de edifícios, de olhares de crianças, de movimentos de pessoas, de pensamentos, de livros, de quiosques, de bares, de ruínas, de comboios, de carros, de músicas, de imagens documentais da destruição da guerra, do Muro de Berlim… Parece montado com a lógica do zapping. Mas, não serão a memória e a história construções sempre fragmentadas?
Os fragmentos de memória e de história de que é feito «As Asas do Desejo» são testemunhos da condição humana. Como os anjos de Wenders são testemunhas, espectadores do curso da história: «Quando Deus, infinitamente desiludido, fez preparativos para se afastar para sempre da Terra e abandonar a Humanidade ao seu destino, aconteceu que alguns dos seus anjos o contrariaram e intervieram em favor da causa dos homens: devia dar-se-lhes ainda mais uma oportunidade.
Deus, irado com o seu protesto, desterrou-os para o então mais terrível lugar do mundo: Berlim.
E, depois, afastou-se.
Tudo isto teve lugar no tempo que hoje se designa por «últimos anos da guerra».
E assim, estes anjos caídos na «segunda queda dos anjos», estão presos, desde então, nesta cidade, para sempre, sem esperança de salvação ou mesmo de regresso ao céu. Estão condenados a ser testemunhas, eternamente, nada mais do que espectadores, sem sequer poder influir o mínimo sobre os homens ou interferir no curso da história. Nem sequer um grão de areia pode ser movido por eles.»


2- Wim Wenders (2010), Wim Wenders, A lógica das imagens. Lisboa: Edições 70, p.120


Cristina Janicas
Abril de 2010

terça-feira, abril 13, 2010

Pedro Costa

O Prémio da Universidade de Coimbra foi este ano atribuído, ex-aequo, a dois nomes centrais da nossa cultura e da nossa arte: Almeida Faria e Pedro Costa.
O percurso de Pedro Costa tem suscitado um grande interesse por parte da crítica e alcançou um reconhecimento internacional que atingiu já uma dimensão de manifesta notoriedade e o situa entre os autores mais inovadores do cinema contemporâneo.
O cinema de Pedro Costa, o seu modo de o fazer, nasce de uma cinefilia confessada. Que não se cinge a uma escolha restrita de cineastas, uma espécie de cânone pessoal em que quisesse reivindicar a sua própria presença, mas se estende por uma longa lista que inclui, naturalmente, como ele próprio esclarece, o cinema de onde vem: o de Godard, de um lado, e o de Straub e Danielle Huillet, do outro.
Em minha opinião, mais de Straub e Huillet que de Godard ou, pelo menos, de algum Godard. Porque se é certo que a obra de Pedro Costa, como a de Godard, se não enquadra numa filiação da ontologia baziniana, ela também se distingue, creio, do tipo de ruptura como a que é exemplificada pelo Godard posterior ao Maio de 68, aquele que proclama ce n’est pas une image juste, c’est juste une image. Ora os filmes de Costa não buscam apenas uma imagem, mas uma imagem que seja o mais próximo possível da “verdade” (seja o que for que tal significa e reconhecendo o autor que a palavra é difícil), o mais próximo possível de algo nu, não maquilhado nos seus sentimentos. O cineasta expressa bem esta ideia numa entrevista em que define como uma sua preocupação constante tentar que um plano seja realmente um plano e não apenas uma imagem … ou só um enquadramento interessante, ou uma composição. E acrescenta querer que essa imagem seja um sentimento. Quando uma imagem não é um sentimento creio que não existe (cito de cor).
É justamente ao visar este objectivo que Pedro Costa remete para a sua própria filiação cinematográfica, confessando: E eu só vejo isso em pessoas como o Chaplin ou o Buñuel o Straub, o Renoir, o Mizogushi… tantos, quer dizer, há milhares. Concluindo: é nessa tradição, é nesse ofício que eu gosto de trabalhar, mas também não sei outro.
Há nestas afirmações dois aspectos que me tocam particularmente:
Em primeiro lugar, a confissão de que a lista dos que o marcaram, a lista dos que têm marcado a história do cinema, é quase ilimitada (“há milhares”) revela não só uma grande humildade de quem se considera apenas um no vasto universo de cineastas, mas também um profundo amor pelo cinema, por uma tradição em que ele escolhe integrar-se e que engloba o cinema na sua dimensão histórica total.
Em segundo lugar, o entendimento do cinema como um simples ofício, aquele, justamente, em que ele gosta de trabalhar, o único em que sabe trabalhar.
É neste ofício que Costa trabalha com um rigor e uma austeridade porventura não distantes das de Bresson, preservando uma incondicional coerência formal e temática que lhe permite construir uma escrita fílmica única, pessoal e intransmissível.
Uma escrita que nos interpela tanto no olhar sobre artistas em trabalho (Straub e Huillet trabalhando um filme, Jeanne Balibar trabalhando as suas canções) como no desamparo sem fim de personagens desenraizadas, corpos que são mapas das feridas abertas pela exclusão, figuras que habitam as trevas que o resto do mundo lhes reservou, mas onde elas não prescindem de ser gente. Gente frágil, é verdade, mas gente.
É esse mundo de sombras que Pedro Costa vive com a sua câmara, em busca de uma luz, por vezes apenas de um simples e frágil traço de luz que (parafraseio um verso de João Miguel Fernandes Jorge) risca tudo de branco e revela o que julgamos ainda não ser…
É perturbador o modo como Pedro Costa convoca a nossa condição de espectadores e interpela a nossa própria condição humana. Sem condições nem pressupostos. Como ele confessa, ninguém sabe o que se vai passar quando se liga uma câmara de filmar. Nunca ninguém soube e é por isso que o cinema é grande.
Ne change rien, o seu filme mais recente, apropria-se do título de uma canção de Jeanne Balibar, mas é também uma citação ou um eco da voz de Godard em Histoire(s) du Cinéma. A frase de Godard, que não acaba aqui é, por sua vez, uma inversão da declaração do Príncipe Salinas, o aristocrata lúcido de O Leopardo: é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma. Godard subverte a frase e o seu sentido, propondo uma alternativa: ne change rien … pour que tout soit différent.
Pedro Costa não muda nada, não muda o cinema, não quer mudar, porque o ama. Mas nos seus filmes tudo é diferente. E o cinema, sem mudar, torna-se, com Pedro Costa, de uma beleza diferente.

Abílio Hernandez

segunda-feira, abril 12, 2010

I’m back!

Cheguei a pensar que Senso adormeceria pesadamente algures numa espécie de saco de cama virtual dos blogues, mas os meus alunos do seminário de Cinema e Outras Artes acharam por bem abaná-lo e obrigá-lo a abrir os olhos. Espero que fique bem desperto por longo tempo.
Senso começou com a disciplina de Análise de Filmes, continuou com a de História e Estética do Cinema e conhece agora uma nova fase, a primeira associada a um seminário de mestrado.
Cabe pois aos “seminaristas” deste ano provar que merecem continuar o trabalho dos “analistas”, dos “historiadores” e dos “estetas” dos anos anteriores. Pela minha parte, procurarei remeter-me ao papel de Fast Eddie Felson, the Hustler: I’m back!

Abílio Hernandez

segunda-feira, abril 05, 2010

«Hoichi, the earless»

«Hoichi, the Earless» (62’) constitui o terceiro segmento da obra de Kobayashi (1916-1996), Kwaidan (1964). O filme é uma adaptação de quatro contos de Lafcadio Hearn, «Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things» que por sua vez constitui uma apropriação de contos japoneses, ou seja, de um fragmento da cultura japonesa.
«Hoichi, the Earless» cruza duas narrativas que são duas tragédias, a tragédia de Hoichi, um jovem e solitário monge, executante de biwa, e a tragédia do clã Heike.
Tragédia 1
A luta pelo poder no Japão é o motivo ou razão que conduz à morte, no mar de Dan-no-ura, do clã Heike. O núcleo central desta narrativa é, pois, a relação entre o poder e a morte.
Tragédia 2
A tragédia de Hoichi tem o seu núcleo no sofrimento que é necessário vivenciar para alcançar um plano artístico superior e para se ser reconhecido pelo talento e pela criação artística.
A criação estética quase nunca é indolor. A história de Hoichi pode ser compreendida como uma metáfora sobre a criação artística. O sublime, por vezes, só pode ser alcançado com sofrimento quer físico, quer psicológico. As sucessivas noites em que Hoichi é convocado a tocar permitem-lhe desenvolver o seu talento mas enfraquecem-no, esgotam-no. Fisicamente, só quando perde violentamente as orelhas a sua história começa a ser conhecida e é a partir daí que ele alcança o reconhecimento e a fama. No fim, Hoichi toca biwa e continua irremediavelmente só. Tal como quando cego tocava para os fantasmas do clã Heike continua a tocar para quem não vê e que silenciosamente ouve a sua música.
A tragédia de Hoichi faz-nos lembrar a tragédia de Vincent Van Gogh (1853-1890).
Para levar a cabo estas duas narrativas, o cinema de Kobayashi convoca outras artes com as quais dialoga: literatura, música, teatro e pintura.
… Literatura – Kobayashi convoca a rica tradição oral de contos populares japoneses, na adaptação de Lafcadio Hearn;
… Música – é o som melancólico e profundamente triste da biwa que, ao longo do filme, sublinha a tragicidade e o sofrimento, nucleares das narrativas que nele se entrecruzam;
… Teatro – Kobayashi encena a batalha de Dano-no-ura com uma evidente teatralidade que, em última instância, pretende retirar qualquer realismo à cena. Os actores representam à frente de um cenário pintado de modo expressionista, que representa um céu vermelho e amarelo. O cenário é, ainda, composto por estandartes vermelhos e os actores aparecem com os rostos brancos, numa clara referência ao teatro Nô.
A cena teatral montada por Kobayashi lembra o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud (1896-1948), que sabemos ter influências orientais. A batalha encenada parece uma dança de guerreiros e é sublinhada por gestos precisos, música, olhares e fisionomias faciais estilizadas, posturas angulosas, gritos, cores fortes, vestuário belo e mágico, máscaras e dissonâncias. Imagens que não nos deixam indiferentes;
… Pintura – a tragédia do clã Heike é contada recorrendo à poesia/música de Hoichi, pela representação teatral da batalha final (teatro dentro do cinema) e também por imagens de quadros e tapeçarias sobre a batalha. Estas imagens vão-se misturando com as sequências filmadas.
As pinturas japonesas jogam com cores fortes e quentes. Mas a pintura é convocada de outro modo: este é um filme marcadamente expressionista. Algumas das imagens lembram-nos Edvard Munch (1863-1944) ou Van Gogh. O céu da batalha é o céu do Grito de Munch e a paisagem que circunda o mosteiro onde Hoichi vive lembra-nos, por exemplo, a paisagem do Semeador de Van Gogh. No expressionismo, a pintura é dramática, marcada pela subjectividade de um eu que pela cor quer expressar sentimentos.
Kobayashi recorre a cores irreais, que dão forma plástica à dor, ao medo, à solidão, à vingança, à beleza e ao sublime. E de que cores é feito este filme? Das cores intensas, fortes (vermelho e amarelo), afinal… das cores da tragédia.

Uma última nota: «Hoichi, the Earless» cruza dois tempos, o sagrado e o profano: tempo profano, humano, corruptível com o tempo divino, perene e incorruptível. A inscrição no corpo de Hoichi de um texto sagrado transporta-o do profano para o sagrado ou permite a manifestação do sagrado no profano, tornando-o numa espécie de hierofania… uma hierofania imperfeita pois, de fora, ficam as orelhas que, deste modo, não são protegidas pelo sagrado.
Fica uma questão: não será a arte de Hoichi ou qualquer arte uma hierofania?

Cristina Janicas

Estudos Artisticos volta a apresentar...


Bem vindos a mais um blogue sobre cinema!!!

Esta introdução não é das melhores, mas não sabia realmente como começar. Já ando há alguns dias, talvez duas semanas para escrever esta introdução, mas não conseguia arranjar uma ideia luminosa que achasse digna de ser introduzida no "reacender" deste blogue. Sem ideias fantásticas resolvi escrever sem pressões...

Como está explicado no canto superior esquerdo da página, este blogue foi criado por alunos de Estudos Artísticos algures em tempos que já lá vão. Ao longo de, não sei bem quanto tempo, tentaram sempre dar dinamismo ao blogue colocando e postando textos sobre cinema, mas após uma explosão de criatividade descrita em palavras sobre a 7ª arte, lá veio o período refractário. Então, passado quase um ano do último post, no âmbito de um seminário do mestrado em Estudos Artísticos intitulado Cinema e Outras Artes, o pioneiro deste blogue Doutor Abílio Hernandez e os seus estimados alunos decidiram, mais uma vez, tentar dinamizá-lo.Sendo assim, deixo o desafio a todos aqueles que gostariam de marcar a sua posição sobre cinema a escrever para este blogue...

Sem nada mais a acrescentar, resta desejar uma boa semana e dizer que não tenham receio de participar porque sem os textos não existe blogue.

Beijinhos

Paula Saraiva
PS- Esta fotografia foi tirada por Micaela Santos em Paris no Café de Flore. Ela chamou-lhe a Simone de Beauvoir do século XXI...