terça-feira, abril 20, 2010

As Asas do Desejo III
Der Himmel über Berlin: Wim Wenders, 1987


O Cinema que convoca o cinema: evocação da memória

A memória é um tema igualmente central neste filme. Uma personagem fundamental é o velho narrador, Homero, que surge no princípio da narrativa na biblioteca, lugar dos anjos e do saber acumulado. Esta personagem é a memória e a história sem as quais não haveria construção de um futuro... E o cinema é uma das armas contra o esquecimento.
O auto-intitulado narrador tem a memória da Segunda Guerra e de Berlim antes dela. Deseja voltar a Potsdamer Platz (destruída pelos bombardeamentos); por isso, caminha e procura. Ele procura a história, tenta reconstruir a cidade, imaginando os espaços que frequentou no passado. Mas restam apenas o vazio e as memórias. A memória permite o diálogo do passado com o presente mas dá-nos conta mais uma vez da transitoriedade e do efémero. A invisibilidade do Potsdamer Platz torna-se visibilidade pela memória do velho narrador e pelas imagens filmadas que passam, cortando o presente e que mostram que este presente o é em função de um passado que já foi mas que o cinema pode sempre actualizar... por isso Peter Falk está em Berlim a filmar a Segunda Guerra... contra o esquecimento.

(…)

Este filme é composto de fragmentos... de espaços da cidade, de interiores de edifícios, de olhares de crianças, de movimentos de pessoas, de pensamentos, de livros, de quiosques, de bares, de ruínas, de comboios, de carros, de músicas, de imagens documentais da destruição da guerra, do Muro de Berlim… Parece montado com a lógica do zapping. Mas, não serão a memória e a história construções sempre fragmentadas?
Os fragmentos de memória e de história de que é feito «As Asas do Desejo» são testemunhos da condição humana. Como os anjos de Wenders são testemunhas, espectadores do curso da história: «Quando Deus, infinitamente desiludido, fez preparativos para se afastar para sempre da Terra e abandonar a Humanidade ao seu destino, aconteceu que alguns dos seus anjos o contrariaram e intervieram em favor da causa dos homens: devia dar-se-lhes ainda mais uma oportunidade.
Deus, irado com o seu protesto, desterrou-os para o então mais terrível lugar do mundo: Berlim.
E, depois, afastou-se.
Tudo isto teve lugar no tempo que hoje se designa por «últimos anos da guerra».
E assim, estes anjos caídos na «segunda queda dos anjos», estão presos, desde então, nesta cidade, para sempre, sem esperança de salvação ou mesmo de regresso ao céu. Estão condenados a ser testemunhas, eternamente, nada mais do que espectadores, sem sequer poder influir o mínimo sobre os homens ou interferir no curso da história. Nem sequer um grão de areia pode ser movido por eles.»


2- Wim Wenders (2010), Wim Wenders, A lógica das imagens. Lisboa: Edições 70, p.120


Cristina Janicas
Abril de 2010