terça-feira, novembro 15, 2005

Suzhou River 4: Cameras don’t lie

A voz do homem é a de um narrador cujo rosto nunca vemos em todo o filme. Videógrafo de profissão, diz-nos, enquanto percorre de barco o rio, que as histórias estão ali, no leito e nas margens do Suzhou, já feitas e à espera de serem contadas, e que ele se limita a registá-las com a sua câmara. Se não gostarmos do que vemos, não nos poderemos queixar. Cameras don’t lie, justifica-se.
Esta é, porventura, a sua primeira mentira. As câmaras tanto mentem como dizem a verdade. Não a verdade ou a mentira delas, mas a verdade ou a mentira de quem faz delas o instrumento privilegiado de narração.
Na realidade, a câmara, por si só, não existe e por isso não narra. Não é ela que, em verdade, olha, mas alguém (uma entidade) que olha através dela e selecciona o que ela deve, em cada circunstância, mostrar ou ocultar.
A câmara é o olho (não o olhar) e o braço (não a escrita) dessa entidade.
Se um narrador mente, a câmara mente.
You’re lying, diz a mulher para o narrador que nos diz que as câmaras não mentem.

Abílio Hernandez