terça-feira, abril 20, 2010

As Asas do Desejo I

Der Himmel über Berlin: Wim Wenders, 1987

Eternidade e efémero ou a condição humana como desejo



Anjos sobrevoam Berlim. Escutam os pensamentos e as angústias dos berlinenses com curiosidade e espanto. Assistem ao viver quotidiano dos humanos como os espectadores que assistem a um filme. Mas tal como o espectador na sala de cinema, os anjos são passivos, assistem aos diferentes ‘filmes’ sem nada poder alterar . Contemplativos, os anjos vêem o mundo a preto e branco: sem cores, sem emoções.
São anjos e, por isso, imortais. Mas engana-se quem pensa que a plenitude é dada pela imortalidade… O ser pleno não deseja porque não sente falta, logo, não procura, permanece imóvel. Os anjos de Wenders (parecem detectives do film noir ) desejam… Damiel (Bruno Ganz) é um anjo atravessado pela falta, falta que progressivamente o vai metamorfoseando num humano, demasiado humano… Damiel, consciente da falta, sente desejo… ele é o desejo. Atravessado pelo desejo da vida, o desejo de uma existência humana, o desejo de conhecer, o desejo de saber , desejo de experimentar, desejo de sentir a pele de Marion (a trapezista de circo por quem se apaixona) mas, também, o desejo de transcender a sua condição eterna, ou seja, de transcender a transcendência.
Somos sensíveis aos mortais que desejam a imortalidade e a plenitude, compreendemos a revolta do homem contra a sua finitude, compreendemos o medo da morte, compreendemos a fuga dos homens às condicionantes espacio-temporais, procurando, deste modo, transcender os seus limites. Os humanos tentam permanentemente transcender, fugir ao efémero, à transitoriedade, procurando a eternidade. Pelo contrário, estes anjos que desejam, que querem ser humanos, escolhem a transitoriedade, o efémero. Parece absurda a ideia de renunciar à existência de anjo a favor de uma vida humana. Contudo, se a existência humana é limitada pelo tempo, ela é mais autêntica, vivida e real que a existência dos anjos. Porque não «trocar a sua imortalidade por uma vida humana, curta e ardente» ?



«Cassiel – E tu que tens para contar?
Damiel – Uma transeunte fechou o chapéu-de-chuva e ficou encharcada. (…) É fantástico viver espiritualmente. Dia após dia testemunhar para a eternidade o que há de puro, de espiritual, nas pessoas. Mas, às vezes, farto-me desta eterna existência de espírito. (…) Gostaria de sentir um peso que anulasse a infinidade e me segurasse à Terra. A cada passo ou a cada golpe de vento. Gostaria de poder dizer: «agora, agora, agora» e não «desde sempre» ou «para todo o sempre».
Sentar-me à mesa e jogar às cartas, ser cumprimentado nem que seja só com um aceno. (…) Eu não quero gerar um filho nem plantar uma árvore, mas seria agradável chegar a casa cansado e dar de comer ao gato, como Philip Marlowe, ter febre, ficar com os dedos sujos de ter lido o jornal… Não me entusiasmar só com coisas do espírito, mas com uma refeição, a curva de uma nuca, uma orelha. Mentir à descarada. (…) E, finalmente, supor em vez de saber sempre tudo. Poder dizer «ah», «oh» e «ai» em vez de «sim» e «ámen».
Cassiel – Poder, ao menos uma vez, entusiasmar-me com o Mal. (…) Ser selvagem.
Damiel – Ou experimentar o que se sente quando se tiram os sapatos debaixo da mesa e se estendem os dedos descalços.»


No filme de Wenders, o desejo é o que confere sentido à existência humana, conquistamos a humanidade a partir do desejo.
No princípio era o desejo…o desejo faz a história. E o Verbo. Damiel sabe algo que os anjos não sabem: conhece o desejo, sabe que a humanidade tem uma beleza peculiar e, por isso, escreve. «Agora, eu sei o que nenhum anjo sabe...»
(…)
A temática do efémero versus eternidade surge em dois temas fundamentais da discografia de Nick Cave and the Bad Seeds, «The Carny» e «From her to Eternity» que o filme de Wenders convoca.

1- A ideia de um filme protagonizado por anjos esclarece-a Wim Wenders na obra, «Wim Wenders, A lógica das imagens»: «A posteriori é-me já quase impossível determinar como nasceu a ideia de povoar com anjos a minha história em Berlim. Surgiu de muitas fontes ao mesmo tempo. Foram, sobretudo, as Elegias de Duíno de Rilke. Depois foram, já desde há muito, os quadros de Paul Klee. O Engel der Geschichte de Walter Benjamin. Foi, de repente, também uma canção dos Cure, na qual se falava de fallen angels e uma música no auto-rádio, em que aparecia o verso talk to an angel. Foi, um dia, no centro de Berlim, aperceber-me daquela figura dourada, o «anjo da paz» (…) resumindo, foi, por assim dizer, a velha «nostalgia do transcendente» e foi simultaneamente também a vontade do contrário flagrante: a vontade de fazer uma comédia!», pp.118-119. Trata-se, já aqui, do cinema a convocar outras artes: literatura, a pintura e a música ou melhor, neste caso, a ser convocado por elas.
2-Cf. Wim Wenders, «Wim Wenders, A lógica das imagens»: «Os anjos estão, portanto, em Berlim desde o fim da Segunda Guerra Mundial, condenados a permanecer aqui. Não detêm já «poder» algum, são apenas espectadores, assistem a tudo aquilo que acontece, sem a mais pequena possibilidade de poderem participar.», p.121.
3- Peter Falk (detective Colombo) está a filmar em Berlim e vimos a descobrir que já fora um anjo que desejou tornar-se humano e se lançou na procura dessa humanidade.
4- De salientar que a raiz etimológica da palavra saber reside em sophia, traduzida em latim por sapiência. Sapiência significa, entre outras coisas, saborear. Este anjo porque sente falta, deseja e procura colmatar o seu desejo. Ele é, por natureza, filósofo. Também o filósofo procura saborear as coisas boas e más da vida para lhes construir um sentido. (É interessante o modo como este filme percorre o terreno da Filosofia)

5-Wim Wenders escreve «nunca antes isto acontecera. Que é possível, isso sabem-no os anjos. As consequências, porém, são desconhecidas.
O anjo que teve a ideia terrível tinha sentido o desejo de se apaixonar por uma pessoa, por uma mulher, e a ideia de poder tocá-la esteve na origem deste pensamento de resultado imprevisível. Fala sobre isto aos seus amigos. Primeiro, estes ficam chocados. Depois, porém, ponderam seriamente sobre as consequências e imaginam o que poderia acontecer como resultado de que alguns de entre eles estejam, afinal, prontos a ousar dar este passo: trocar a sua imortalidade por uma vida humana, curta e ardente.» in, Wim Wenders (2010), Wim Wenders, A lógica das imagens. Lisboa: Edições 70, p.124

6-Trocadilho com o título do livro de James Jones e com o título do filme de Fred Zinnemann «From here to Eternity». Este trocadilho não é inocente e reside na substituição do deítico espacial (here) pelo deítico pessoal (her). Aqui, o cinema convoca uma música que, por sua vez, convoca o cinema. Esta intertextualidade enriquece o objecto artístico e dá-lhe outros sentidos, propicia outras abordagens.

Cristina Janicas
Abril de 2010

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