domingo, maio 30, 2010

Eat Drink Man Woman - I

Alimento, amor e sexo. Dimensões subjetivas da vida 



Acreditamos que a análise da obra cinematográfica em referência, não se afasta, substancialmente, do óbvio. Entretanto, do fecundo universo ao qual podemos observar sua pluralidade de significados, procuramos interpretá-la de modo particular, calcada numa construção de conceitos comuns.
A iniciar pelo título eat drink man woman, podemos afirmar que as nossas vidas são orientadas por algumas necessidades fisiológicas básicas: comer, beber e respirar. Mas, ao nos referirmos à alimentação, especialmente, o nosso imaginário vai para muito além, evoca na nossa mente uma série símbolos e significados sociais, sexuais, religiosos, estéticos, etc…
Não é divagado falar que a abordagem das questões pertinentes à alimentação é muito próxima das questões sexuais, das questões do amor. Entendemos que estas são situações pouco claras, de cunho subjetivo, sem uma fonte exclusiva e sem um diagnóstico facilmente localizável. Alimento, amor e sexo são termos que representam o homem na sua dimensão integral, onde estão circunscritas interferências de toda ordem e susceptível de interpretações diversas.
Afirmam os antropólogos que o sexo e a alimentação são aspectos do comportamento humano, dos mais sobrecarregados de ideias. No filme, essa afirmativa pode ser observada no diálogo entre o chefe Chu e o chef Wen:
– “Comida e sexo são as necessidades humanas básicas, não há como fugir”;
e complementa:
– “o som não está no ouvido;
– o sabor não está na boca;
– o sexo não está…”
Dito isso, acreditamos que o título reflete os principais desejos da natureza humana: o de comer e o de fazer sexo.
A história tem segmento numa sociedade oriental modernizada e muito ocidentalizada: revelada na pressa, no movimento intenso dos automóveis, como se fosse o sangue ferruginoso bombeado pelas batidas de uma rumba a exalar um aroma de gás carbônico – é a imagem da vida ocidental cujas ruas estão abarrotadas de carros, de barulho e de fuligem. Ruas que pulsam como artérias poluídas e nos dão a sensação de que a vida flui – muitas vezes – no tom cinza, sem aromas, sem sabores, sem tempo para ouvir, sem tempo para amar.
São aspectos da sociedade contemporânea, tal como o fast food – um modelo alimentar de qualidade bastante discutível, cuja globalização entendemos revelar aspectos condenáveis e subverte a mente humana quanto à consciência que se revela no prazer inigualável de apreciar e saborear um alimento. Prazer que vai muito além de simplesmente conduzir o alimento do prato até a boca. Ademais, os tentáculos do fast food estão fincados na uniformização do padrão alimentar, podem enfraquecer e, até mesmo, destruir (a longo prazo) a identidade cultural alimentar de vários povos, conduzindo ao enfraquecimento da alimentação tradicional, reveladora de cultura singular. Na película, a identidade cultural alimentar está representada pelo chef Chu. No contexto da história ele está envolvido numa intrínseca relação de poder; cultiva a distinção social pelo gosto, pela identidade étnica repassada através das técnicas alimentares, o que podemos observar através do cuidadoso processo de elaboração dos alimentos, que aparece numa explosão de formas e cores.
Observamos que a aparente superficialidade das imagens dos alimentos nos faz viajar pelo imaginário, com isso, dizemos que o jogo visual apela para outros sentidos: o aroma, o tato, o palato e a audição. E aqui cabe uma observação acerca do palato: há uma cena na qual o chef revela a possível perda do palato, o que acreditamos refletir a perda dos elementos essenciais da família, primeiro a mulher e em seguida as filhas (três irmãs de temperamentos tão diferentes): a mais velha, uma professora amargurada que viveu até então, efetivamente, de uma ilusão, de uma fantasia amorosa; a filha do meio, uma executiva de hábitos ocidentalizados – porém a única que mantém a tradição; e a mais jovem que trabalha, ironicamente, numa cadeia de fast food – cada uma encontra um novo parceiro, o que marca um novo contexto familiar. E nos parece que a mais velha e a mais nova querem se libertar daquelas tradições. A percepção desse afastamento o faz perder a sua capacidade gustativa – entendemos que perder o paladar reflete perder o gosto pela vida.

Shirley Bilro Medeiros

Eat Drink Man Woman - II

O amor através do alimento


O almoço dominical é um ritual – sempre marcado por revelações importantes – que nos faz crer que o alimento não é só aquilo que levamos do prato à boca e que supre as nossas carências fisiológicas, mas um ritual que provoca a construção de papeis afetivos: o alimento do espírito, do amor, de renovação. É a maneira que o Chu encontra para expor as suas emoções mais profundas, ele se agarra na paixão pela construção da arte gastronômica e reflete, através dos pratos, o amor que dedica às filhas. (Ressaltamos que o chef Wen compara o chef Chu a Beethoven).
É necessário ressaltar que pai e filhas têm uma enorme dificuldade de demonstrar a afetividade, pois não há toque, não há carinho físico, não conseguimos ver um beijo afetuoso, um abraço aconchegante. No seu silêncio as suas emoções são quase imperceptíveis mas que explodem através da arte minuciosa, delicada, transportada para os pratos apresentados. Com isso, dizemos que ele não verbaliza para as filhas, que as ama, mas procura substituir as expressões orais e físicas através da preparação de pratos sensorialmente complexos. O seu poder de toque e a sua sensibilidade são transportados pelo aroma, pelo paladar e pela beleza dos pratos. Assim, o amor é comunicado através da comida preparada – o que vai muito além da satisfação que entra em nosso sentido através das papilas gustativas.
Em determinada cena, a filha mais jovem diz:
– “Amar é estarmos com alguém com quem podemos expressar os sentimentos.”
E mais, é através das papilas gustativas que desencadeiam-se o mecanismo físico de percepção do doce e do amargo, as sensações antagônicas: quente e o frio – aqui está presente a dualidade da vida: o Yin e o Yang. Amar também é discordar, é enfrentar, daí percebemos que, no convívio em torno da mesa, logo afloram as tensões que são uma realidade no núcleo familiar. Nota-se, claramente, o conflito das gerações.
Mas vida é cíclica, e ele recupera o palato e o amor pela vida. O que é recuperada pela explosão de um novo sentimento afetivo, uma nova parceira. Notamos o vínculo que se estabelece entre ele e a Chan Chan (filha da nova mulher) – influenciada por Chu, a criança passa a valorizar o alimento tradicional e influencia os coleguinhas da escola, tanto que passam a elaborar o cardápio do almoço.
Last but not least, na cena final, onde cada um dos personagens toma seu destino, o encontro dominical resume-se a Chu e filha do meio, que prepara a refeição e, na degustação de uma sopa é recuperado um sabor perdido, designadamente quando ele diz:
–“Há gengibre e um pouco de… (reticencias…) (esse sabor, entendemos ser o afeto profundo, não verbalizado, silenciado mais uma vez, mas que se reflete no toque suave das mãos de pai e filha que aconchegam na malga que contém o sabor das recordações).
Nessa cena, o alimento é fonte de recordação, e vale lembrar – como diz Soren Kierkegaard – recordação é diferente daquilo que simplesmente guardamos na memória, porque recordar é da ordem da idealidade e a memória é indiferente ao conteúdo. Na recordação, Chu e filha conservam a eterna continuidade da vida. É um momento tenro de saudade. E saudade é vir à memória uma doce recordação das envolvências e das situações vividas por aquela família.

Shirley Bilro Medeiros