domingo, maio 30, 2010

Eat Drink Man Woman - II

O amor através do alimento


O almoço dominical é um ritual – sempre marcado por revelações importantes – que nos faz crer que o alimento não é só aquilo que levamos do prato à boca e que supre as nossas carências fisiológicas, mas um ritual que provoca a construção de papeis afetivos: o alimento do espírito, do amor, de renovação. É a maneira que o Chu encontra para expor as suas emoções mais profundas, ele se agarra na paixão pela construção da arte gastronômica e reflete, através dos pratos, o amor que dedica às filhas. (Ressaltamos que o chef Wen compara o chef Chu a Beethoven).
É necessário ressaltar que pai e filhas têm uma enorme dificuldade de demonstrar a afetividade, pois não há toque, não há carinho físico, não conseguimos ver um beijo afetuoso, um abraço aconchegante. No seu silêncio as suas emoções são quase imperceptíveis mas que explodem através da arte minuciosa, delicada, transportada para os pratos apresentados. Com isso, dizemos que ele não verbaliza para as filhas, que as ama, mas procura substituir as expressões orais e físicas através da preparação de pratos sensorialmente complexos. O seu poder de toque e a sua sensibilidade são transportados pelo aroma, pelo paladar e pela beleza dos pratos. Assim, o amor é comunicado através da comida preparada – o que vai muito além da satisfação que entra em nosso sentido através das papilas gustativas.
Em determinada cena, a filha mais jovem diz:
– “Amar é estarmos com alguém com quem podemos expressar os sentimentos.”
E mais, é através das papilas gustativas que desencadeiam-se o mecanismo físico de percepção do doce e do amargo, as sensações antagônicas: quente e o frio – aqui está presente a dualidade da vida: o Yin e o Yang. Amar também é discordar, é enfrentar, daí percebemos que, no convívio em torno da mesa, logo afloram as tensões que são uma realidade no núcleo familiar. Nota-se, claramente, o conflito das gerações.
Mas vida é cíclica, e ele recupera o palato e o amor pela vida. O que é recuperada pela explosão de um novo sentimento afetivo, uma nova parceira. Notamos o vínculo que se estabelece entre ele e a Chan Chan (filha da nova mulher) – influenciada por Chu, a criança passa a valorizar o alimento tradicional e influencia os coleguinhas da escola, tanto que passam a elaborar o cardápio do almoço.
Last but not least, na cena final, onde cada um dos personagens toma seu destino, o encontro dominical resume-se a Chu e filha do meio, que prepara a refeição e, na degustação de uma sopa é recuperado um sabor perdido, designadamente quando ele diz:
–“Há gengibre e um pouco de… (reticencias…) (esse sabor, entendemos ser o afeto profundo, não verbalizado, silenciado mais uma vez, mas que se reflete no toque suave das mãos de pai e filha que aconchegam na malga que contém o sabor das recordações).
Nessa cena, o alimento é fonte de recordação, e vale lembrar – como diz Soren Kierkegaard – recordação é diferente daquilo que simplesmente guardamos na memória, porque recordar é da ordem da idealidade e a memória é indiferente ao conteúdo. Na recordação, Chu e filha conservam a eterna continuidade da vida. É um momento tenro de saudade. E saudade é vir à memória uma doce recordação das envolvências e das situações vividas por aquela família.

Shirley Bilro Medeiros

1 Comments:

Anonymous Joana Barbedo said...

Há algum tempo, descobri um excerto de um filme que me impressionou muito; a cena, envolta num erotismo delicado, é indescritivelmente bela, e ficou na minha memória como uma das mais belas cenas que já vi. O filme chama-se "Tampopo" (Juzo Itami, 1985) e, com muita pena minha, ainda não tive oportunidade de vê-lo na sua totalidade (dele apenas conheço as belíssimas cenas da ostra e do ovo). Mas a imagem, o som, o movimento são tão intensos, que a cena da ostra se cruzou imediatamente com “Eat Drink Man Woman", assim que li o comentário sobre o filme.



http://www.youtube.com/watch?v=F4_GTVbmHYQ

terça jun. 01, 05:23:00 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home