segunda-feira, abril 05, 2010

«Hoichi, the earless»

«Hoichi, the Earless» (62’) constitui o terceiro segmento da obra de Kobayashi (1916-1996), Kwaidan (1964). O filme é uma adaptação de quatro contos de Lafcadio Hearn, «Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things» que por sua vez constitui uma apropriação de contos japoneses, ou seja, de um fragmento da cultura japonesa.
«Hoichi, the Earless» cruza duas narrativas que são duas tragédias, a tragédia de Hoichi, um jovem e solitário monge, executante de biwa, e a tragédia do clã Heike.
Tragédia 1
A luta pelo poder no Japão é o motivo ou razão que conduz à morte, no mar de Dan-no-ura, do clã Heike. O núcleo central desta narrativa é, pois, a relação entre o poder e a morte.
Tragédia 2
A tragédia de Hoichi tem o seu núcleo no sofrimento que é necessário vivenciar para alcançar um plano artístico superior e para se ser reconhecido pelo talento e pela criação artística.
A criação estética quase nunca é indolor. A história de Hoichi pode ser compreendida como uma metáfora sobre a criação artística. O sublime, por vezes, só pode ser alcançado com sofrimento quer físico, quer psicológico. As sucessivas noites em que Hoichi é convocado a tocar permitem-lhe desenvolver o seu talento mas enfraquecem-no, esgotam-no. Fisicamente, só quando perde violentamente as orelhas a sua história começa a ser conhecida e é a partir daí que ele alcança o reconhecimento e a fama. No fim, Hoichi toca biwa e continua irremediavelmente só. Tal como quando cego tocava para os fantasmas do clã Heike continua a tocar para quem não vê e que silenciosamente ouve a sua música.
A tragédia de Hoichi faz-nos lembrar a tragédia de Vincent Van Gogh (1853-1890).
Para levar a cabo estas duas narrativas, o cinema de Kobayashi convoca outras artes com as quais dialoga: literatura, música, teatro e pintura.
… Literatura – Kobayashi convoca a rica tradição oral de contos populares japoneses, na adaptação de Lafcadio Hearn;
… Música – é o som melancólico e profundamente triste da biwa que, ao longo do filme, sublinha a tragicidade e o sofrimento, nucleares das narrativas que nele se entrecruzam;
… Teatro – Kobayashi encena a batalha de Dano-no-ura com uma evidente teatralidade que, em última instância, pretende retirar qualquer realismo à cena. Os actores representam à frente de um cenário pintado de modo expressionista, que representa um céu vermelho e amarelo. O cenário é, ainda, composto por estandartes vermelhos e os actores aparecem com os rostos brancos, numa clara referência ao teatro Nô.
A cena teatral montada por Kobayashi lembra o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud (1896-1948), que sabemos ter influências orientais. A batalha encenada parece uma dança de guerreiros e é sublinhada por gestos precisos, música, olhares e fisionomias faciais estilizadas, posturas angulosas, gritos, cores fortes, vestuário belo e mágico, máscaras e dissonâncias. Imagens que não nos deixam indiferentes;
… Pintura – a tragédia do clã Heike é contada recorrendo à poesia/música de Hoichi, pela representação teatral da batalha final (teatro dentro do cinema) e também por imagens de quadros e tapeçarias sobre a batalha. Estas imagens vão-se misturando com as sequências filmadas.
As pinturas japonesas jogam com cores fortes e quentes. Mas a pintura é convocada de outro modo: este é um filme marcadamente expressionista. Algumas das imagens lembram-nos Edvard Munch (1863-1944) ou Van Gogh. O céu da batalha é o céu do Grito de Munch e a paisagem que circunda o mosteiro onde Hoichi vive lembra-nos, por exemplo, a paisagem do Semeador de Van Gogh. No expressionismo, a pintura é dramática, marcada pela subjectividade de um eu que pela cor quer expressar sentimentos.
Kobayashi recorre a cores irreais, que dão forma plástica à dor, ao medo, à solidão, à vingança, à beleza e ao sublime. E de que cores é feito este filme? Das cores intensas, fortes (vermelho e amarelo), afinal… das cores da tragédia.

Uma última nota: «Hoichi, the Earless» cruza dois tempos, o sagrado e o profano: tempo profano, humano, corruptível com o tempo divino, perene e incorruptível. A inscrição no corpo de Hoichi de um texto sagrado transporta-o do profano para o sagrado ou permite a manifestação do sagrado no profano, tornando-o numa espécie de hierofania… uma hierofania imperfeita pois, de fora, ficam as orelhas que, deste modo, não são protegidas pelo sagrado.
Fica uma questão: não será a arte de Hoichi ou qualquer arte uma hierofania?

Cristina Janicas