«Hoichi, the earless»

«Hoichi, the Earless» cruza duas narrativas que são duas tragédias, a tragédia de Hoichi, um jovem e solitário monge, executante de biwa, e a tragédia do clã Heike.
Tragédia 1
A luta pelo poder no Japão é o motivo ou razão que conduz à morte, no mar de Dan-no-ura, do clã Heike. O núcleo central desta narrativa é, pois, a relação entre o poder e a morte.
Tragédia 2
A tragédia de Hoichi tem o seu núcleo no sofrimento que é necessário vivenciar para alcançar um plano artístico superior e para se ser reconhecido pelo talento e pela criação artística.
A criação estética quase nunca é indolor. A história de Hoichi pode ser compreendida como uma metáfora sobre a criação artística. O sublime, por vezes, só pode ser alcançado com sofrimento quer físico, quer psicológico. As sucessivas noites em que Hoichi é convocado a tocar permitem-lhe desenvolver o seu talento mas enfraquecem-no, esgotam-no. Fisicamente, só quando perde violentamente as orelhas a sua história começa a ser conhecida e é a partir daí que ele alcança o reconhecimento e a fama. No fim, Hoichi toca biwa e continua irremediavelmente só. Tal como quando cego tocava para os fantasmas do clã Heike continua a tocar para quem não vê e que silenciosamente ouve a sua música.
A tragédia de Hoichi faz-nos lembrar a tragédia de Vincent Van Gogh (1853-1890).
Para levar a cabo estas duas narrativas, o cinema de Kobayashi convoca outras artes com as quais dialoga: literatura, música, teatro e pintura.
… Literatura – Kobayashi convoca a rica tradição oral de contos populares japoneses, na adaptação de Lafcadio Hearn;
… Música – é o som melancólico e profundamente triste da biwa que, ao longo do filme, sublinha a tragicidade e o sofrimento, nucleares das narrativas que nele se entrecruzam;
… Teatro – Kobayashi encena a batalha de Dano-no-ura com uma evidente teatralidade que, em última instância, pretende retirar qualquer realismo à cena. Os actores representam à frente de um cenário pintado de modo expressionista, que representa um céu vermelho e amarelo. O cenário é, ainda, composto por estandartes vermelhos e os actores aparecem com os rostos brancos, numa clara referência ao teatro Nô.
A cena teatral montada por Kobayashi lembra o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud (1896-1948), que sabemos ter influências orientais. A batalha encenada parece uma dança de guerreiros e é sublinhada por gestos precisos, música, olhares e fisionomias faciais estilizadas, posturas angulosas, gritos, cores fortes, vestuário belo e mágico, máscaras e dissonâncias. Imagens que não nos deixam indiferentes;
… Pintura – a tragédia do clã Heike é contada recorrendo à poesia/música de Hoichi, pela representação teatral da batalha final (teatro dentro do cinema) e também por imagens de quadros e tapeçarias sobre a batalha. Estas imagens vão-se misturando com as sequências filmadas.
As pinturas japonesas jogam com cores fortes e quentes. Mas a pintura é convocada de outro modo: este é um filme marcadamente expressionista. Algumas das imagens lembram-nos Edvard Munch (1863-1944) ou Van Gogh. O céu da batalha é o céu do Grito de Munch e a paisagem que circunda o mosteiro onde Hoichi vive lembra-nos, por exemplo, a paisagem do Semeador de Van Gogh. No expressionismo, a pintura é dramática, marcada pela subjectividade de um eu que pela cor quer expressar sentimentos.
Kobayashi recorre a cores irreais, que dão forma plástica à dor, ao medo, à solidão, à vingança, à beleza e ao sublime. E de que cores é feito este filme? Das cores intensas, fortes (vermelho e amarelo), afinal… das cores da tragédia.
Uma última nota: «Hoichi, the Earless» cruza dois tempos, o sagrado e o profano: tempo profano, humano, corruptível com o tempo divino, perene e incorruptível. A inscrição no corpo de Hoichi de um texto sagrado transporta-o do profano para o sagrado ou permite a manifestação do sagrado no profano, tornando-o numa espécie de hierofania… uma hierofania imperfeita pois, de fora, ficam as orelhas que, deste modo, não são protegidas pelo sagrado.
Fica uma questão: não será a arte de Hoichi ou qualquer arte uma hierofania?
Cristina Janicas
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