terça-feira, abril 20, 2010

As Asas do Desejo II
Der Himmel über Berlin: Wim Wenders, 1987


O cinema e o circo

Wenders escolhe o circo como metáfora da vida humana. O circo é, por excelência, a arte do efémero. O circo é transitório… a vida do circo é curta… fragmentada… monta-se a tenda… faz-se o espectáculo… desmonta-se a tenda e fica a marca de um vazio, de uma ausência, de algo que já não é. O circo não possui raízes, é, por natureza, nómada e a-espacial. A vida humana é como a do circo… nasce, constrói-se mas, acaba.
A primeira imagem que se vê do circo é-nos dada através de uma passagem pela qual podemos ver uma tenda. A câmara aproxima-se e mostra-nos as pessoas do circo. À semelhança do circo também aqueles que o habitam são humanos desenraizados. E, por isso, livres.

«Marion – Não sei quem sou, não faço ideia. Sou alguém sem origens, sem história, sem país e quero continuar assim. Estou aqui, sou livre, posso imaginar tudo. Tudo é possível. Basta erguer os olhos e volto a ser o mundo. Agora, aqui, uma sensação de felicidade que sempre poderei ter.»


É no circo que Damiel vai encontrar o objecto do seu desejo, que o vai impelir a metamorfosear-se em humano: Marion, a trapezista, a que voa, a que (como alguns na vida…) tenta transcender os limites do humano.
No decurso da metamorfose de Damiel, este cruza-se com Peter Falk junto a uma roulotte, mais um lugar sem raízes…transitório…efémero.
O circo não representa apenas a transitoriedade da condição humana. Nele encontramos a tragédia, a comédia, o sublime, o horrendo, o equilíbrio, a harmonia, a desproporção… a vida e a grandeza e pequenez que encerra. Ou seja, nele encontramos a diversidade da experiência humana, a variedade de matizes, as cores.
O circo é, ainda, o lugar por excelência das crianças, um lugar onde situamos a infância e a inocência de que fala o poema de Peter Handke, Lied Vom Kindsein (A Canção da Infância), que inicia o filme. A criança que é capaz de ver o invisível (os anjos...), que é capaz de sonhar, contrasta com os adultos que vivem isolados, fechados entre quatro paredes ou em si mesmos, adultos inexpressivos, sem vida que deambulam pela cidade de Berlim. Esses perderam a capacidade de desejar e de sonhar. Só a criança é capaz de olhar um ribeiro e ver um rio e olhar um charco e ver o mar. A criança olha a existência como um feixe de inúmeras possibilidades.


1-Talvez, por isso, o circo seja considerado uma arte menor ao contrário das outras artes cujas obras possuem uma durabilidade que transcende o tempo.
2- Um anjo caído, agora actor de cinema, que se encontra em Berlim a rodar um filme sobre a 2ª Guerra Mundial e a quem o desejo já levara a transformar-se em humano).
Peter Falk testemunha a favor da condição humana: «Peter Falk – Não te vejo, mas sei que estás aqui. Sinto-o. Andas por perto desde que cheguei. Gostava de poder ver a tua cara. Olhar-te nos olhos e dizer-te como é bom estar aqui, tocar nas coisas, agarrar. É uma sensação boa. Fumar, tomar café. As duas coisas juntas é fantástico. Ou desenhar. (…) Quando temos as mãos frias, esfregamo-las uma na outra. É bom. É uma sensação boa. Tantas coisas boas! Mas tu não estás aqui. Eu estou. Gostava que estivesses. Gostava que pudesses falar comigo. Eu sou um amigo, «compañero».

3-É quando, no interior do circo, vê Marion, pela primeira vez, que Damiel começa a experienciar o mundo de um modo humano. Por isso, as cores aparecem no filme de Wenders até aqui monocromático

Cristina Janicas
Abril de 2010