terça-feira, abril 13, 2010

Pedro Costa

O Prémio da Universidade de Coimbra foi este ano atribuído, ex-aequo, a dois nomes centrais da nossa cultura e da nossa arte: Almeida Faria e Pedro Costa.
O percurso de Pedro Costa tem suscitado um grande interesse por parte da crítica e alcançou um reconhecimento internacional que atingiu já uma dimensão de manifesta notoriedade e o situa entre os autores mais inovadores do cinema contemporâneo.
O cinema de Pedro Costa, o seu modo de o fazer, nasce de uma cinefilia confessada. Que não se cinge a uma escolha restrita de cineastas, uma espécie de cânone pessoal em que quisesse reivindicar a sua própria presença, mas se estende por uma longa lista que inclui, naturalmente, como ele próprio esclarece, o cinema de onde vem: o de Godard, de um lado, e o de Straub e Danielle Huillet, do outro.
Em minha opinião, mais de Straub e Huillet que de Godard ou, pelo menos, de algum Godard. Porque se é certo que a obra de Pedro Costa, como a de Godard, se não enquadra numa filiação da ontologia baziniana, ela também se distingue, creio, do tipo de ruptura como a que é exemplificada pelo Godard posterior ao Maio de 68, aquele que proclama ce n’est pas une image juste, c’est juste une image. Ora os filmes de Costa não buscam apenas uma imagem, mas uma imagem que seja o mais próximo possível da “verdade” (seja o que for que tal significa e reconhecendo o autor que a palavra é difícil), o mais próximo possível de algo nu, não maquilhado nos seus sentimentos. O cineasta expressa bem esta ideia numa entrevista em que define como uma sua preocupação constante tentar que um plano seja realmente um plano e não apenas uma imagem … ou só um enquadramento interessante, ou uma composição. E acrescenta querer que essa imagem seja um sentimento. Quando uma imagem não é um sentimento creio que não existe (cito de cor).
É justamente ao visar este objectivo que Pedro Costa remete para a sua própria filiação cinematográfica, confessando: E eu só vejo isso em pessoas como o Chaplin ou o Buñuel o Straub, o Renoir, o Mizogushi… tantos, quer dizer, há milhares. Concluindo: é nessa tradição, é nesse ofício que eu gosto de trabalhar, mas também não sei outro.
Há nestas afirmações dois aspectos que me tocam particularmente:
Em primeiro lugar, a confissão de que a lista dos que o marcaram, a lista dos que têm marcado a história do cinema, é quase ilimitada (“há milhares”) revela não só uma grande humildade de quem se considera apenas um no vasto universo de cineastas, mas também um profundo amor pelo cinema, por uma tradição em que ele escolhe integrar-se e que engloba o cinema na sua dimensão histórica total.
Em segundo lugar, o entendimento do cinema como um simples ofício, aquele, justamente, em que ele gosta de trabalhar, o único em que sabe trabalhar.
É neste ofício que Costa trabalha com um rigor e uma austeridade porventura não distantes das de Bresson, preservando uma incondicional coerência formal e temática que lhe permite construir uma escrita fílmica única, pessoal e intransmissível.
Uma escrita que nos interpela tanto no olhar sobre artistas em trabalho (Straub e Huillet trabalhando um filme, Jeanne Balibar trabalhando as suas canções) como no desamparo sem fim de personagens desenraizadas, corpos que são mapas das feridas abertas pela exclusão, figuras que habitam as trevas que o resto do mundo lhes reservou, mas onde elas não prescindem de ser gente. Gente frágil, é verdade, mas gente.
É esse mundo de sombras que Pedro Costa vive com a sua câmara, em busca de uma luz, por vezes apenas de um simples e frágil traço de luz que (parafraseio um verso de João Miguel Fernandes Jorge) risca tudo de branco e revela o que julgamos ainda não ser…
É perturbador o modo como Pedro Costa convoca a nossa condição de espectadores e interpela a nossa própria condição humana. Sem condições nem pressupostos. Como ele confessa, ninguém sabe o que se vai passar quando se liga uma câmara de filmar. Nunca ninguém soube e é por isso que o cinema é grande.
Ne change rien, o seu filme mais recente, apropria-se do título de uma canção de Jeanne Balibar, mas é também uma citação ou um eco da voz de Godard em Histoire(s) du Cinéma. A frase de Godard, que não acaba aqui é, por sua vez, uma inversão da declaração do Príncipe Salinas, o aristocrata lúcido de O Leopardo: é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma. Godard subverte a frase e o seu sentido, propondo uma alternativa: ne change rien … pour que tout soit différent.
Pedro Costa não muda nada, não muda o cinema, não quer mudar, porque o ama. Mas nos seus filmes tudo é diferente. E o cinema, sem mudar, torna-se, com Pedro Costa, de uma beleza diferente.

Abílio Hernandez