quarta-feira, maio 16, 2007

Alemanha, Ano Zero

Alemanha, Ano Zero. Não existe descrição mais precisa sobre o que se passou depois do Holocausto. O duro pós-guerra, a depressão, a fome, representam um período cheio de dor, de sentimentos que se dividem entre a alegria da liberdade e o desespero que o fim da guerra traz. O começar do zero exigido pelo Futuro é tão ou mais doloroso que a própria guerra. Berlim está destruída, o que antes eram edifícios são agora destroços que se espalham pela cidade. As pessoas vivem na alienação total, tentando apenas sobreviver até ao dia seguinte. Não deixa de ser um campo de batalha, um campo de batalha onde os mais fracos, que deviam ser protegidos, são deixados para trás pela vida dos que são fortes. Irónico. A ideologia que devia terminar com o fim da guerra ainda persiste na vida dos que lutam para sobreviver, dos que não são soldados.

Edmund é um jovem rapaz, um menino de 12 anos, representa o estereótipo da criança ariana e é submetida aos horrores da guerra que fez a sua apologia. Além disto, a criança loira tem uma identificação quase imediata com um Anjo, que ironicamente se torna demoníaca, monstruosa. É, portanto, nele que se concentram todas as dualidades, os extremos de carácter, o Anjo e o Demónio, a prova do indivíduo partido, dilacerado. A sua duplicidade retira-lhe a identidade, retira-lhe aquilo que faz do Homem o que ele deve ser. Apesar de ser uma criança tem as responsabilidades de um homem, é o único que sustenta e suporta a sua família e, portanto, vive num limbo entre a criança e o adulto, sem nunca chegar a ser um, verdadeiramente. Por pertencer a dois mundos, Edmund não é reconhecido em nenhum deles. É-lhe negado esse direito e esta realidade fica bem clara em dois momentos. Num primeiro momento, Edmund é expulso de um campo de colheitas quando os camponeses suspeitam da sua idade, protestam, dizendo que ele lhes tira o pão das suas bocas.
Como precisa de arranjar outra forma de sustentar a família, começa a vender coisas no Mercado Negro onde mais tarde encontra um antigo professor que lhe arranja um trabalho, que denuncia a sua ideologia política. O rapaz devia ir até ao Edifício do Chanceller, em ruínas, e pôr a tocar um velho vinil com discursos de Hitler, que seriam depois vendidos a soldados como souvenirs..
Dias depois, quando descobre que o seu pai voltará a casa, depois de ter estado num hospital, Edmund entra em desespero e envenena o seu pai. Aqui a exaltação de Edmund como ser duplo é evidente, note-se a frieza e os gestos limpos e precisos com que o rapaz prepara o chá para o seu pai. E, depois, como ajuda o seu pai a tomar o veneno recebendo elogios pela dedicação e preocupação que demostra; este gesto define-o como um bom rapaz. Amor ou sobrevivência?
A partir daqui Edmund não voltará a ser uma criança, e isto fica claro quando, num segundo momento, um grupo de crianças que brincam com uma bola não deixam Edmund participar no jogo porque ele não pertence ali, aquele não é o seu lugar e as crianças não o reconhecem como igual. Esta falta de identidade, o não reconhecimento – impacto profundo no indivíduo – acentuam o desespero do rapaz, desencadeando um processo irreversível de alienação que o leva ao suicídio, após a morte do pai. Depois disto, o fim trágico deixa-se adivinhar, dando lugar aos momentos mais intensos e dramáticos e simultaneamente aos mais belos de todo o filme. Daqui destaco três situações. A primeira em que ele descobre um pequeno objecto de ferro e brinca, como as crianças fazem, e depois aponta-o à cabeça, como se este fosse uma arma – afirmação da não-infância. A segunda, em que espreita pela janela de um edifício destruído e vê a sua família pela última vez, o belo contraste de luz e sombra determina quem vive e quem vai morrendo. E a terceira, quando com cuidado limpa o casaco sujo de pó e o pendura num pedaço de metal como se fosse um bem precioso, o casaco é também um elemento representativo do homem, aqui Edmund despe, simbólica e definitivamente, aquilo que o identifica com um homem, deixando para trás um dos seus dois lados na esperança de recuperar o que nunca lhe pertenceu, a existência como indivíduo.
É impossível ficar-se indiferente a toda a carga dramática que envolve o suicídio de Edmund, que apenas se parece como uma criança. É ele que sustenta a sua família, é ele que se propõe sempre a resolver os seus problemas e os dos outros, é ele que mata o pai e em seguida suicida-se, sempre como um homem.

Tal como o pós-guerra, o filme de Rossellini apresenta um sem número de contradições e ironias da sociedade. O filme tem uma expressão quase documental, ideia confirmada pelo próprio quando afirma "as coisas estão lá, para quê manipula-las”, mas o cuidado que ele tem com o pormenor, com este tipo de pormenor, tornam as cenas mais imponentes, mais devastadoras, destruidoras e a brutalidade dura e cruel da realidade que aborda transmite ao espectador uma sensação de desconforto que se prolonga até muito depois dos créditos finais passarem na tela negra.
Joana Barbedo, dARQ