VERTIGO - Obsessão e Psicose

Com o infeliz título português (como é tradição nossa) de “A Mulher que Viveu Duas Vezes”, Vertigo (ou “Vertigem” tão-somente) permanece uma referência insubstituível na intensa produção fílmica de Sir Alfred Hitchcock, em primeira instância no que se refere à sua construção centrípeta e, portanto, intrincada sobre si mesma.
Concebida em 1958 (entre Rear Window [1954] e Psycho [1960]), esta obra pode bem entender-se como monumento erigido à capacidade que o cinema tem, por excelência, de tecer a ilusão; a ilusão do equilíbrio (ou da falta dele) de Scottie (James Stewart), um polícia em convalescença perturbado pela morte de um colega; a ilusão de uma mulher (Kim Novak) que se faz passar por outra; a ilusão da morte; a ilusão do tempo – relativizado no interior de um tronco de sequóia; enfim a ilusão do próprio espectador, que tarda em apossar-se dos elementos mínimos que lhe permitirão construir uma versão coerente da narrativa.
Vertigem desde o primeiro instante, espiralando-se adentro a íris de um olho humano, de mulher. Vertigem na ligação entre mundos, dos vivos e dos mortos, das figuras de carne e osso e das pessoas pintadas numa tela. Vertigem de um vestido verde vivificando-se, ardendo por entre um salão saturado de vermelhos. Vertigem do déjà-vu – repetição da morte e das suas circunstâncias.
No centro da espiral existe o vazio, multiplicado sobre si mesmo. Existe uma gravidade incontornável que puxa a matéria para o centro e a faz girar e cair. E apenas isso. Sem parar. É essa a raiz da vertigem – a incapacidade de discernir um ponto sólido, estático, que sugira o fundo do poço, o fim da queda.
Vertigem é o tormento de um homem, que um outro aproveita obscuramente para proveito próprio. É uma angústia que alastra ao espectador, que só pode lamentar o presente envenenado que é saber um pouco mais que o protagonista e ainda assim ser surpreendido pelo poder de sucção da espiral que, no fim, atrai para o abismo uma mulher que não pára de morrer (ou que pelo menos já “viveu duas vezes”), desta feita com o nome de Judy Barton…
No centro da vertigem jaz a morte, que pune quem a desafia. Mas e o que acontece àqueles que, como Scottie, se vêem de súbito na sua periferia, entre a estabilidade e a instabilidade? Será que alguma vez recuperarão na totalidade? Ou a vertigem não é apenas um estádio mas um medo adormecido, pronto a despertar a qualquer momento, como brecha súbita rasgando-se debaixo dos nossos pés? E será esse medo instrumentalizável por mãos alheias, em desfavor do desgraçado que ceder a esta fobia?
Daniel Boto