segunda-feira, novembro 27, 2006

Peeping Tom


O filme Peeping Tom (1960) é relativamente tardio na carreira do seu realizador inglês Michael Powell. Relativamente tardio não tanto pela idade que Powell tinha na altura mas porque, de facto, depois deste filme a sua obra, que durante as décadas anteriores de 40 e 50 fora bastante abundante, torna-se esparsa senão mesmo episódica. A razão do fenómeno estaria associada ao escândalo que o lançamento do filme causou na altura. A crítica achou o filme execrável talvez, podemos pensar, pela escolha do tema.

Como o título sugere, o filme trata o voyeurismo, mas um voyeurismo perverso, sádico. A sua personagem central, Mark (Karlheinz Böhm), é a dum jovem operador de câmara que nos tempos mortos fotografa mulheres nuas para depois vender – até aqui tudo se integra perfeitamente no socius. A situação complica-se quando Mark começa a matar essas mulheres como forma de prazer sexual. Assim, a história do filme gira em torno da perversão do olhar associada à indústria das imagens, ao cinema, e, de forma mais geral, aos mecanismos do olhar. Neste “programa” que o filme propõe, a dada altura parece clara a tentativa de associação e identificação do nosso olhar de espectador com o de Mark, colocando-nos numa posição incómoda mas poderosa. Somos forçados a pensar o confronto ou o reconhecimento da relação entre ver e participar.
É na verdade este lado auto-reflexivo do filme que se mostra mais interessante. Entre outras, existem duas cenas que me chamaram mais a atenção. Passam-se ambas no estúdio de cinema onde Mark trabalha. A primeira refere-se ao momento em que, antes de filmar a morte da actriz substituta, Vivian (Moira Shearer), entre aquele jogo de “quem vê quem, quem” Mark diz «the result must be so perfect that even he would approve». Vivian pensa que ele se refere ao filme (dentro do filme) em que ela colabora, mas ele falava do seu pai – que, como sabemos pelas imagens “documentais”, é na realidade o próprio Michael Powell. Há toda esta quase paródia que me parece muito atraente no filme.
A outra cena, já depois do assassínio de Vivian, passa-se durante um ensaio no mesmo estúdio em que uma actriz assustadiça tem que escolher uma caixa, nessa caixa, sabemos nós e sabe Mark (um exemplo dessa identificação de olhares de que falava no início), está o cadáver de Vivian. O realizador dentro do filme informa que esta deverá ser uma cena cómica. E ela é cómica para nós, para os intervenientes desavisados ela é uma cena de terror.
Nesta cena nós não temos medo e não nos aterrorizamos porque sabemos o que se vai passar. Aguardamos pelo contrário com expectativa o terror no rosto daquela actriz ao se deparar com o corpo de Vivian. E há aqui um duplo, talvez um triplo prazer. Um gozo do conhecimento (=poder), mas também o gozo do suspense que só o cinema nos dá em tais doses. Nós sabemos o que vai acontecer, mas não sabemos como. E ainda um terceiro gozo, um gozo mais intelectual em perceber. Perceber a ironia, o programa por detrás desta cena.
Há, claro, uma questão moral que aqui se levanta (hoje com relativo menor escândalo), e que tem toda a pertinência. A generalidade os espectadores de cinema admite ter prazer com cenas que considere violentas ou criminosas por saber tratar-se apenas de um filme – a inocente Helen (Anna Massey) coloca precisamente essa questão, ela diz a dada altura «é horrível mas é só um filme, não é?». Mas será essa distinção assim tão clara? O espectador é apenas um “Peeping Tom”? Que espécie de cumplicidade se estabelece entre “quem vê” e “o que/quem é visto”?
Eu não me acho absolutamente incapaz de sentir prazer com cenas que considere moralmente reprováveis, abjectas ou vis. Já Santo Agostinho nas suas Confissões, há mais de 1500 anos, discutia este assunto, opondo-se à inclusão de certo tipo de cenas na representação teatral por achar que fomentava esse prazer pelo baixo, pela violência. Hoje esse interesse continua a ser visivelmente explorado desde a forma mais banal (nos jornais televisivos, por exemplo) ou em formas requintadíssimas (vários exemplos na literatura de Sade ou Bataille). Portanto, saber isso de nós, ter essa consciência ajuda-nos, julgo eu, a conhecer melhor os limites e capacidades do humano. E, como se sabe, muitas vezes o conhecimento é perturbador…


Catarina Maia