quinta-feira, novembro 02, 2006

O Sétimo Selo

img SÉTIMO SELO
O Sétimo Selo (1957) de Ingmar Bergaman é uma adaptação da peça Trämålning (O Retábulo da Peste), escrita e encenada pelo mesmo autor em 19551. Apesar de muito distinto, da sua base teatral o filme guarda não só o plano da narrativa como alguns dos actores que acompanharam sempre Bergman e nos quais assenta muito do carácter excepcional e singular da sua cinematografia – entre eles Max Von Sydon, Bibi Andersson, Gunnar Björnstrand.

A primeira sequência do filme mostra-nos um céu nebuloso onde paira uma águia negra sob a qual a maré baixa e calma anuncia o nascer do dia. Este início prepara-nos já para o que se segue, uma história difícil em que o mítico se mescla com o real de forma invulgar. Aquilo que poderíamos entender apenas como a representação do nascer de um outro dia, «igual aos demais» como diria Mia (Bibi Andersson), é “corrompido” pela nossa consciência histórica e simbólica. Aquela águia negra é afinal a mesma que o Apóstolo João descreve no Apocalipse (8, 13) como vindo anunciar a calamidade.

Estamos na Suécia do século XIV e Antonius Block (Max Von Sydon) é um Cavaleiro que passados vários anos na Terra Santa, a lutar contra os infiéis nas Cruzadas, volta à sua terra natal, para a ver assolada pela peste, pela miséria e morte. Acompanha-o na jornada o seu Escudeiro, Jons (Gunnar Björnstrand), mas estes dois homens percorrem, em parte, como se verá mais adiante, viagens diferentes.

Logo no início, a Morte (Bengt Ekerot) vem para levar Antonius mas ele diz não estar preparado e faz com ela um pacto: enquanto o jogo de xadrez entre ambos durar ele viverá. Este pacto, este “não estar preparado” parece prender-se com uma busca que o Cavaleiro empreende e sobre a qual ficamos a conhecer melhor os contornos através da cena fulcral em que Antonius se encontra com a Morte numa igreja e, não a reconhecendo no seu disfarce, lhe confessa as suas dúvidas, o seu desejo (assim como os detalhes da próxima jogada de xadrez…). Ele procura, na verdade ele exige um Deus manifesto. Ao mesmo tempo que afirma claramente não querer a fé, mas o conhecimento – ele parece procurar uma verdade (crível, no caso da fé, e passível de ser conhecida, no caso da razão).

Poderíamos dizer que, ao contrário de Jons, a sua viagem é não apenas física mas espiritual. Antonius perdeu a inocência de que Karin (Inga Landgré), a sua mulher, fala no reencontro quase no final do filme. Perdeu a fé inquestionável nos homens e em Deus, e no entanto isso revela-se insuportável para ele. Na primeira sequência do filme vemos Block a tentar rezar mas a constatar que para ele esse era já um gesto inútil, vazio. Ele não é capaz de aceitar o não propósito, o aparente absurdo do universo. Então busca Deus nas sobras de todas as coisas. Procura qualquer indício que revele a sua existência, mas não confia nos seus sentimentos, ele insiste que Deus se lhe mostre. A ele.

A personagem de Antonius encontra-se como que isolada do exterior, aprisionada nas suas dúvidas. Ele é passivo, quase não participa na acção que o rodeia. Das poucas vezes em que intervém é porque o objecto que o desperta está relacionado com a sua busca – como no caso das “bruxas” (na verdade pobres raparigas, vitimas dum obscurantismo fanático e pseudo-religioso) a quem ele faz perguntas sobre o Demónio, visto aqui por Block como uma espécie de atalho que o levaria a Deus. O que o atormenta maioritariamente é pensar que a morte significa o fim, o nada como Jons sugere. Outro caso de interesse é a sua relação com a “sagrada família” que discutiremos de seguida.

Antonius, é-nos dado a saber, nem sempre terá sido assim. Descobrimos mais tarde no filme que ele foi um religioso convicto, que terá ido lutar nas Cruzadas inflamado pelo discurso de um teólogo – (Raval) que agora se transformara num patife. Sabemos que ele foi feliz, livre. Quando ele fala com Mia sobre a sua mulher e o tempo de recém-casados percebemos, ao mesmo tempo, que ele foi livre e feliz e que, no entanto, tudo isso está agora distante, perdido. É neste encontro com aquilo a que chamámos a “sagrada família” – Jof (Nils Poppe), Mia e Mikael – que nos deparamos com a primeira possibilidade real de uma direcção. Block fica muito comovido por esta experiência. Pela primeira vez ele encontra o amor humano, a simplicidade, a fé. Na conversa com Mia ele diz que recordará aquele momento com um sinal. Um sinal de quê?

Entretanto, o jogo com a Morte continua e ela ameaça-o ameaçando esta família. Mais tarde apercebemo-nos da ideia que paira sobre Antonius quando num terceiro jogo, fatal, ele perde com a Morte distraindo-a assim para que Jof possa fugir com a família. A Morte deixa bem claro que ninguém lhe escapa. Nunca. Contudo, aqui lembramo-nos mais uma vez da conversa com a Morte na igreja em que o Cavaleiro fala de um “assunto urgente” uma “acção com significado”, qualquer coisa que ele precisa ainda fazer. Parece haver algo que liga então a acção de Block à sua estratégia de conhecimento. A tentativa para salvar a família poderia ser “esse acto” e o “conhecimento” a descoberta da possibilidade da felicidade no modelo da sagrada família.

Contudo uma questão se levanta: Se o Cavaleiro encontra na sagrada família a resposta para as suas dúvidas, porque continua ele inquieto com a derradeira chegada da Morte? É difícil responder… Pode acontecer que Antonius Block não tenha afinal encontrado nada. Pode ser que face à Morte ele tenha esquecido o “sinal” que dizia ter encontrado junto a Mia. O Sétimo Selo é, de facto, um filme algo pessimista mas não fatalista, no meu entender.

Nesta análise escolhi centrar-me na personagem de Antonius por julgar que o seu percurso é no fundo o percurso do filme, mas a personagem da Morte é igualmente capital e a sua caracterização pode ajudar-nos a perceber melhor este nó górdio em que nos encontramos.

A Morte tem neste filme uma “presença física” muito forte. O seu corpo parece-nos humano, mais importante que isso, as suas acções e esquemas assemelham-se em tudo ao comportamento humano – ela aprecia o jogo (onde é sempre possível ganhar ou perder, caso contrário não seria um jogo) mas é gananciosa e trapaceira (faz tudo para ganhar, inclusive “disfarçar-se” para descobrir, enganando, o truque que o seu adversário pretende usar para a derrotar), tem sentido de humor, etc. Isto faz-nos entrever uma possibilidade de entender a sua figura como, até certo ponto, manipulável ou pelo menos influenciável.

Quando há pouco afirmava que o filme seria pessimista mas não fatalista queria dizer que se o acto de Block não significa afinal nada, porque não tem qualquer influência sobre o que o rodeia, então está de facto tudo ditado – tudo absurdo. Não porque não existe Deus mas, precisamente, porque não existe acção. É necessário que o sujeito se reconheça não como completamente autónomo, nem completamente determinado por outros, mas como um sujeito que assume a responsabilidade agindo. Parece-me ser esta a dolorosa constatação de Antonius Block.



Catarina Maia

___________________________________

1 Além desta houve uma outra encenação da peça, no mesmo ano, mas desta vez sob a encenação de Bengt Ekerot (encenador de renome e que representa no filme o papel de Morte). Esta peça foi também traduzida para português por Júlio Gesta e editada por Ruy de Oliveira em Três Peças em Um Acto, Porto, 1961.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Espero que percebas porque gosto tanto de Bergman... A sua obra tem como temáticas pricipais a fé e religião, a morte, o amor, o sofrimento, a complexidade das relações humanas - todos assuntos intimamente relacionados com a essência do ser humano e o mistério da existência. A sua linguagem cinematográfica é profunda e poética, cada sequência a transbordar de significado e densidade dramática, com a comedição suficiente que caracteriza os verdadeiros mestres. Bergman é por vezes brutal - mas sempre belo.

sexta jan. 19, 01:32:00 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home