segunda-feira, dezembro 12, 2005

Deus, Amor e Morte: a poesia e o drama na narrativa fílmica d’O Sétimo Selo de Ingmar Bergman




O Sétimo Selo é uma obra singular no que respeita ao número de referências intertextuais nela contidas. São elas de natureza poética, trágica e cómica (e logo dramática) – manifestações evidentes de ordem maioritariamente existencial, empreendidas pelos mais diversos (e de certo modo tipificados, para que mais abrangentes) seres humanos.

Estáticas num ambiente que remonta a um cavado medievo histórico – estrutura precária profundamente enraizada nas mais sombrias práticas mágicas e religiosas – as personagens deste meio inerte, despido perante a crueza dos elementos da natureza, cedem à pulsão do medo, da peste e dum obscurantismo entregue ao auto-flagelo como paradoxal prática aliviadora.

Varrendo a costa desabrigada, a ventania propaga a morte pelas planícies e empurra os refugiados floresta negra adentro. As árvores e os seres, devastados à luz da intempérie nocturna, assistem à purificação das almas pelo fogo, à expulsão dos insondáveis inimigos de Deus, que penetram sem permissão as almas atormentadas dos pobres fiéis, permeáveis ao deboche do demo.

A morte é enfim o caminho único e inevitável. Hoje, amanhã ou depois de amanhã. Angústia permanente e no entanto tão desejada, tão merecida por todos quantos praticam a crueldade em pleno estado de ingenuidade incapacitante. Dança como um urso! Derradeira punição para os que se consomem pelo desejo carnal: Amor. A mais negra das pestes (...). Pode-se morrer de prazer.

A morte ocupa pois uma dimensão maior na generalidade da obra. É princípio inseguro, desenvolvimento imprevisível, desfecho aleatório mas de todo o modo postulado absoluto. Causa e consequência por si só, bastando-se nesse ciclo imutável, renovável e fechado, aparentemente sem nenhum outro sentido que não esse mesmo.

Porque a morte é uma certeza, uma questão de tempo e uma adversária desleal num jogo de xadrez. Porque a morte é cínica. Porque a morte é já o próximo crepúsculo. Porque é uma estratégia como outra qualquer, que não deve subaproveitar-se (Estás surpreendida por eu estar a roubar os mortos? É um negócio muito lucrativo, hoje em dia). Porque a morte é tremendamente bela, à maneira futurista (Uma caveira é mais interessante do que uma mulher nua).

Como superar a ansiedade da morte e torná-la produtiva e aceitável aos olhos de Deus? É preciso conhecer Deus. Ou mesmo Satanás, seu gémeo que atormenta e repugna os homens: Vejo a minha imagem [no espelho] e sinto nojo e medo. (...) Há que criar uma imagem do nosso medo e chamar-lhe Deus.

Neste filme de forte inspiração bíblica – onde o paganismo puro coexiste com notável naturalidade –, a presença do Destino surge marcada pelo mórbido. O capuz negro da morte, personificação contente no seu ridículo (porém implacável no agir), persegue omnipresentemente um cavaleiro (cavalgada = movimento = fuga) e diverte-se semeando a dúvida e a questionação, para responder apenas que as respostas não serão dadas, que as respostas não existem (existe uma resposta para a Morte, para Deus ou para o Amor?).

Atentemos no final do filme (ainda que esta criação exceda em larga medida este formato, estendendo-se a outros campos da expressão criativa), que encerra num cenário semelhante ao do seu início (forma circular). Como interpretar um grupo de pessoas literalmente de mãos dadas com a morte? Será que esta cedência perante a vida significa o desistir? Sim. Mas trata-se de uma desistência pouco clássica, marcada pela estóica capacidade de resistir cedendo. A derradeira fé é mesmo essa: entregar o corpo tacitamente, sabendo de antemão que o que sabemos é nada. Mas só nos é possível atingir essa consciência quando nos vemos diante do Mal, afinal a súmula encapuçada de todos os nossos mais primários medos, para os quais ainda não foi encontrada uma resposta que nos sossegue o bastante.

E é assim que devemos aceitar a morte. Caso contrário tudo acabaria por ser (...) um bocado prosaico. Desta maneira temos a certeza que a arbitrariedade da vida e, consequentemente, do amor, nos vence sempre sem que possamos resistir. Mesmo que enganemos a Morte por uma jogada que seja, ela acaba por nos arrebatar de qualquer modo, pois é maior e inelutável.

Para os que ficam, a assistir aos crepúsculos alheios, como um grupo de actores, é uma questão de prosaísmo. Como o amor: Podia ter-te violado. Mas não acredito nesse tipo de amor.

Daniel Boto